sábado, 2 de fevereiro de 2013

O homem que desapareceu

Não saberia dizer ao certo quando tudo aquilo começou. Nenhum marco histórico, nenhum acontecimento importante, nada que pudesse determinar com certeza o início daquilo que foi o seu fim. A verdade é que, diferente do que nos faz crer os filmes hollywoodianos e os livros de sucesso, não são dias especiais que mudam o curso da nossa vida, mas a sucessão de dias comuns que determina quem somos. Naquela época, tinha 17 anos e uma mente inquieta com muita coisa para falar. Como um pequeno dragão a expelir fogo, sua mente trabalhava sem descanso, mas era calada por uma boca que se recusava a emitir sons, não importava o quanto a mente fustigasse a fala, por razões ainda não explicadas pela Ciência, ou, numa visão bem plana das coisas, por simples timidez, não exprimia o que pensava ou sentia. Era o filho do meio de uma família comum, e como filho do meio, não gozava do ineditismo do primeiro, tampouco a liberdade displicente de ser o último. Assim, ainda que intuitivamente, começou a acreditar que teria de ser o melhor em tudo para ser notado. Era o primeiro a completar as tarefas, tinha as notas mais altas, o cabelo mais penteado, a cama mais arrumada, mas foi com o tempo que percebeu que para ser tudo isso, ele não tinha, e, às vezes, até não poderia, emitir sua opinião. E se era assim dentro de casa, imagine agora no grande mundo lá fora, ao qual ele iria enfrentar, como é comum aos garotos de 17 anos enfrentarem, na busca de um emprego, um lugar no mundo, uma identidade...

Perfeccionista por pressão, arrogante por convicção e calado por personalidade, acreditava que nada era páreo para ele, tinha um currículo perfeito, inúmeras qualidades o descreviam: presteza, pontualidade, prontidão. Trabalhava feito um relógio suíço, claro que conseguiria o trabalho que quisesse e uma vez nele, iria longe. E conseguiu e foi. Antes dos 30 anos, já tinha alcançado cargos de gerência, supervisão e presidência em metade do tempo que os demais mortais levariam para chegar, era um exemplo de sucesso. Sem contar que conseguiu tudo isso sem desmanchar o cabelo milimetricamente penteado com doses cavalares de gel, sorriso de comercial de pasta dental e as mais belas mulheres a tiracolo. Todos queriam imitá-lo, todos queriam ser ele, todos queriam matá-lo. Só um olhar mais atento, quase científico, perceberia que ele conquistou tudo isso sem emitir sua voz, ficando sempre em cima do muro, disposto a falar o que os outros queriam ouvir, nunca o que ele queria dizer... A sua jornada de sucesso continuou, mesmo quando não parecia que poderia chegar mais alto, ele foi lá e mostrou ser possível.

Porém em outro dia comum, daqueles que a gente não marca no calendário, uma transformação começou a se processar: sentiu um queimor no peito, uma falta de ar, um terror tomando o pensamento, estava muito ocupado para morrer. Havia vendas, fusões, gerências, vistorias a serem feitas que dependiam exclusivamente dele, como iriam ficar? Pensava que não havia batalhado tanto para, literalmente, não morrer na praia, e sim, no escritório, trabalhando! Estava obstinado a marcar uma consulta médica assim que possível, e assim o fez: apertos de mãos, ‘olá’, ‘respire’, ‘isso’, ‘vamos ver sua pressão’, ‘isso’, ‘perfeito!’, ‘somente exames de rotina’, ‘perfeitos’, ‘saúde de menino, hein!’, ‘volte sempre’, ‘ora, não, isso o senhor acerta com a moça na recepção’. Nada com a saúde, devem ser gases ou gastrite. Gases ou gastrite?! Mas o velho terror sempre voltava à espreita na forma de um aperto no coração, um pensamento aterrador à noite, uma queimação no estômago, um peso na cabeça. O hidróxido de alumínio prescrito até melhorava o desconforto, mas não aplacava o sofrimento. Por dentro corroia-se aos poucos, se desfazendo em temores, questionamentos e dúvidas, mas sempre mantendo a aparência de perfeição que o levara tão longe. O perfeito verniz. 

Foi em outro dia qualquer que um lampejo de lucidez o atingiu como um raio que acerta uma árvore seca em um campo aberto. Direto, predestinado, lançando fogo e destruição, mas também trazendo a luz. Estava sentindo o peso das palavras não ditas, dos pensamentos não externados, dos xingamentos engolidos, do completo mutismo que se auto infligiu. Por um longo tempo isto vinha secretamente tomando-lhe as articulações, arqueando-lhe as costas, tirando o brilho dos seus olhos. Durante anos, o fogo do dragão emudecido, preso em sua mente agora lhe esquentava o estômago e pesava sob o peito. Os pensamentos mais loucos, os atos inconsequentes, as rotas de fuga de uma vida planejada por ele mesmo tomaram seus pulmões, na forma de uma fumaça densa e úmida, prejudicando-lhe a respiração e levando embora o fôlego já necessário para uma última escapada. Na sua mente nada além de uma substância amorfa, negra e pegajosa, as sobras dos planos deixados pra depois prejudicavam suas sinapses e o seu pensamento, refletindo no seu olhar vazio de sempre os escombros de uma construção que nunca chegou a ser lançada a pedra fundamental. As lágrimas de anos de não expressão, apesar de algumas escaparem durante as noites mais difíceis, se acumulavam em forma de bolsas pesadas sobre os olhos dando-lhe uma aparência terrível. Estava velho, doente, mas consciente que há muito já estava morto. 

Não soube dizer a data com precisão, quando havia se calado pela primeira vez, quando havia dado o primeiro sorriso condescendente, engolido o primeiro sapo, ou até mesmo se foi o acúmulo destes ao longo de anos de inexpressão e subserviência, mas já não tinha escapatória, estava morto em vida. Não importava a causa mortis. E foi assim em outro dia qualquer que desapareceu, e não foi surpresa alguma que ninguém não deu por sua falta: presidente, gerente, pai, esposo, todos os cargos que ocupava foram devidamente preenchidos. Não havia ninguém ao seu lado para transmitir suas palavras finais (ou seriam as primeiras?), a voz trêmula, franzina, com medo do mundo a espera de ouvi-la. Com suas palavras fracas ganhando o espaço e sendo ouvidas, o homem percebeu que nada de extraordinário aconteceu quando ele falou (a não ser pelo extraordinário fato dele ter se expressado) e, com a face aterrorizada, soltou um gaguejante e débil:
- U..u...uau! 

Não se ergueram monumentos, não se marcou no calendário, nem data festiva, nem feriado em homenagem ao homem que desapareceu por que se calou, era um dia comum, como qualquer outro, destes que não definem a vida de ninguém...

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